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O problema do BURNOUT na Medicina Veterinária

Texto traduzido e resumido por Dr. Leandro Zaine, à partir do artigo: “A narrative review of the physiology and health effects of burnout associated with veterinarian-pertinent occupational stressors” por Steffey et al., 2023. Publicado na revista Frontiers in Veterinary Science, disponível na íntegra aqui.

 

Em uma pesquisa de 2020 com quase 3 mil veterinários, o estresse foi considerado o maior desafio que eles têm de enfrentar na profissão. De acordo com a AVMA, esse esgotamento com a profissão leva a 40% considerarem abandonar a carreira, sendo as principais razões para isso a falta de equilíbrio entre trabalho e vida pessoal, os desafios com o estresse e doenças mentais. Além disso, apenas 41% dos veterinários com menos de 34 anos recomendariam a profissão para um amigo ou familiar (esse valor é de 2021, em 2005 era de 75%).

As profissões da área de saúde normalmente têm taxas maiores de estresse e burnout, mas na Medicina Veterinária isso praticamente quintuplicou nos últimos 5 anos. Atualmente, aproximadamente 50% dos veterinários relatam níveis de burnout moderados a altos, sendo que esses níveis aumentam se forem: mulheres e recém-formadas.

Lidar com o problema do estresse ocupacional é algo complexo. Em geral, as soluções estão focadas nos indivíduos, apontando que eles têm traços de personalidade que favorecem o aparecimento desses problemas e que devem usar práticas individuais para manejo do estresse como atividade física, alimentação adequada e mindfulness.

Entretanto, essas soluções só funcionam em curto prazo. É necessária uma abordagem mais ampla que ajude a conter os fatores que desencadeiam essas condições.
Algo que dificulta a solução do problema são as chamadas condições “culturais”, ou seja, há vários tipos de comportamentos que são esperados do médico veterinário culturalmente. Por exemplo, mesmo que se diga valorizar o “auto-cuidado”, a realidade é que muitos veterinários são obrigados a trabalhar sob condições e expectativas pouco realistas e as necessidades e saúde dos indivíduos são ignoradas. Isso revela que culturalmente existem expectativas para os veterinários serem super-heróis, impermeáveis ao estrese e à fadiga, ou crenças que a saúde pessoal é menos importante que o trabalho.

 

O que é BURNOUT?

Burnout se define como uma síndrome relacionada ao trabalho de exaustão física e emocional secundária ao estresse ocupacional crônico e caracterizado como leve, moderado ou severo. Ele tem sido relacionado a perfis de indivíduos que tentam resolver problemas ativamente e a pessoas que trabalham muitas horas por semana ou estão envolvidas em vários trabalhos ao mesmo tempo.

A experiência do burnout pode incluir sinais físicos como fadiga e somatização. Ele é uma vulnerabilidade que pode promover o desenvolvimento de depressão e/ou ansiedade e pode estar exacerbada ou acelerado na presença de uma saúde mental ruim pré-existente.

A maioria dos pesquisadores na área seguem o conceito tridimensional elaborado por Maslach. Ele consiste em 3 domínios de exaustão emocional: cinismo/despersonalização e um baixo senso de eficácia profissional. O que acontece nessa condição é o que se chama de uma sobrecarga de estímulos; o indivíduo recebe muito mais estímulos do que consegue lidar. Isso é piorado pela frequência de interrupções nas tarefas em que ele está desempenhando e pela dissimilaridade de conteúdo entre a tarefa que está executando as tarefas da interrupção.

Quando um indivíduo se aproxima do ponto de sobrecarga cognitiva ele começa a demonstrar deterioração na qualidade e quantidade de trabalho comparado ao seu próprio padrão anterior e também a exibir comportamentos similares a sintomas depressivos. Postula-se que o fenômeno do burnout pode ser uma resposta neuropiscológica auto-protetiva às tentativas de se funcionar além de uma capacidade fixada.

 

Por que o burnout acontece?

O burnout é resultado de um prolongado e não-solucionado estresse no trabalho e é fundamentalmente causado por um desajuste crônico entre as demandas do trabalho e os recursos do trabalhador. Sua etiopatogenia é multifatorial e complexa.

Ele difere do estresse de curto prazo relacionado ao trabalho no qual os indivíduos afetados descrevem uma clara relação entre o estressor e os sintomas vivenciados dentro de 3 meses. No burnout as pessoas frequentemente ignoram os sintomas de estresse por muitos anos e descrevem que viver uma vida estressante era algo comum para elas. Algumas podem nem estar ativamente cientes do níveis de estresse em suas vidas até que atinjam um ponto de colapso.

As pessoas que desenvolvem burnout estão raramente inclinadas a procurar ajuda. Pelo contrário, elas tendem a perseverar, com esforços ativos para desempenhar a níveis mais altos apesar das dificuldades, sem reclamar ou pedir por ajuda. A perseverança é um traço adaptativo desejável quando a pessoa tem controle sobre a situação, mas não é uma resposta adaptativa quando o se falta controle sobre a situação. Os humanos podem suportar consideráveis quantidades de estresse desde que os períodos estressantes se alternem com períodos de recuperação e no burnout essa recuperação acaba não ocorrendo adequadamente.

 

Impactos cognitivos e na saúde mental

Pessoas afetadas pelo burnout clínico comumente reclamam sobre déficits cognitivos afetando a resolução de problemas, aprendizado, atenção, foco e na falha para guardar informações importantes como nomes e compromissos. Essa fadiga mental subjetiva pode persistir por até 3 anos após o diagnóstico, mesmo com tentativas de se remediar, demonstrando as suas consequências de longo prazo.

Funções cognitivas complexas e superiores como a atenção, concentração e memória de trabalho, foco e determinação estão prejudicadas em indivíduos com burnout.
Ao longo do tempo, as manifestações psicossociais podem se transformar em transtornos mentais reais, distanciamento, aumento nos conflitos interpessoais e intenção de deixar o trabalho. Os sinais podem incluir frustração e raiva no trabalho, irritabilidade, ansiedade e pânico, reações exageradas, sentimento de estar chateado ou triste sem saber a causa, e o sentimento de não se controlar as emoções.

 

Tratamentos

O tratamento dos efeitos do burnout variam bastante em duração, severidade e uma variedade de fatores individuais e deve ser direcionado baseado em consultas com profissionais da saúde. Estratégias de bem-estar individual ajudam a lidar com os sintomas de estresse excessivo e podem prover um alívio temporário, mas, se não forem manejadas as causas fundamentais do burnout, os sintomas frequentemente retornam aos níveis pré-intervenção dentro de um ano após as intervenções terem sido implantadas.

A literatura cita 4 fases de recuperação do burnout. Na primeira delas, há o aceitamento da situação e o afastamento do trabalho; procura-se obter um descanso mental e físico completo que inclui grandes quantidades de horas de sono.

A segunda fase visa abordar as causas-base do burnout e criar uma rotina diária e um senso de controle. Atividades físicas, práticas de redução de estresse e assistência com profissionais da saúde mental também são recomendadas neste momento. Pode haver um eventual desejo de reconectar com o ambiente de trabalho.

O objetivo da terceira fase é promover um retorno gradual ao trabalho. Ele pode ser acompanhado por uma redução temporária nas horas de trabalho (estudos mostram que uma redução de 25% da carga horária ajuda a prevenir a recorrência das crises). Nesta fase, também devem ser avaliadas a carga de trabalho e a distribuição de tarefas para que a sobrecarga não ocorra novamente.

Na quarta e última fase visa-se encontrar sentido no trabalho e se definir uma rotina sustentável dentro do trabalho. Devem ser consideradas mudanças no comportamento pessoal e também alterações na estrutura do trabalho. Pode-se também analisar se seriam benéficas reduções na carga horária.

 

Estressores ocupacionais na área de saúde

As profissões da área de saúde, incluindo a Medicina Veterinária, são exigentes e trazem uma alta carga mental, frequentemente acompanhadas de alta carga administrativa e de pressão no trabalho. Os veterinários têm requisitos de performance complexos para cognição, processamento de informações e tomada de decisões, manejo de afeto e emoções, e a navegação entre tensões interpessoais.

O trabalho de alta pressão é caracterizado por altas demandas e baixo controle. Essa combinação crítica gera pressão psicológica, frequentemente levando a fadiga, depressão, ansiedade e outras doenças. O estresse se origina ao lidar com a ambiguidade e incerteza.

Alguns autores atribuem 6 fatores como fonte de burnout no trabalho moderno: 1- sobrecarga de trabalho; 2- Falta de controle; 3- Recompensa insuficiente; 4- Quebra do senso de comunidade; 5- Falta de justiça; e 6- Conflito de valores.

A evolução dos mecanismos modernos de prestação dos serviços médicos ajuda a complicar esse quadro. Historicamente, os médicos e veterinários tinham controle quase completo sobre suas clínicas independentes, o que provavelmente contribuía em algum nível para reduzir a pressão no trabalho. Atualmente, como empreendedores ou funcionários de empresa, eles têm muito menos controle sobre o ambiente de trabalho, sofrendo mais com o estresse.

 

Sofrimento ocupacional inevitável

É inegável que a própria natureza do trabalho veterinário pode causar estresse. Estressores inerentes à profissão veterinária incluem decisões de vida e morte, eutanásia de animais, restrições econômicas aos tratamentos, resultados ruins de tratamentos e o luto dos clientes. A realização de eutanásia pelos veterinários é um aspecto que difere fundamentalmente de médicos e de outras profissões. Estressores relacionados à moralidade como a eutanásia, situações abusivas e restrições econômicas ao tratamento podem ser uma séria fonte de conflitos morais para veterinários.

A literatura aponta que os estressores mais importantes que os veterinários enfrentam são a carga de trabalho, demandas emocionais, problemas com clientes, problemas com colegas de trabalho, preocupações financeiras, balanço ruim de vida pessoal e profissional e altas responsabilidades; algumas dessas características são intrínsecas à profissão e inevitáveis.

 

Sofrimento ocupacional evitável

A carga de trabalho é algo que se associa positivamente com a ocorrência de burnout, ou seja, se a carga é grande, a chance do burnout ocorrer é maior. Ambientes cognitivamente exigentes, que constantemente requerem tomadas de decisões complexas resultam em um estado de exaustão cognitiva que consequentemente impacta a cognição e a execução de tarefas do indivíduo. Esse quadro se compara aos prejuízos causados por se perder uma noite inteira de sono, estar alcoolizado ou perder aproximadamente 13 pontos de QI.

Além das demandas durante as horas de trabalho, estar disponível para o trabalho fora do horário de expediente é um fator importante no desenvolvimento do burnout. A capacidade de desengajar mentalmente do trabalho durante os horários de descanso tem uma grande influência na relação entre estressores do trabalho, pressão no trabalho e baixo bem-estar. Isso é algo bem provável de acontecer na Medicina Veterinária, pois se espera que o veterinário esteja disponível para atender demandas de seus pacientes e equipe.

Outro fator de sobrecarga apontado é o uso de prontuários eletrônicos. Pesquisas com médicos mostram que a substituição do papel por meios digitais é causa de sobrecarga no trabalho e tem uma relação com o burnout. Pode-se assumir que o mesmo aconteça dentro da Medicina Veterinária. Essas novas exigências geradas pela tecnologia podem fazer com que os profissionais tenham que trabalhar mais horas para darem conta das demandas administrativas e, até mesmo, tenham que acessar os sistemas fora de horário de trabalho.


Notas do Tradutor

Busquei esse artigo para estudar ao observar essa condição constante de estresse com muitos veterinários que eu acompanho e até comigo mesmo. Sem adotar um ponto de vista pessimista ou vitimista, percebo que os desafios de ser veterinário se expandiram muito desde o primeiro contato que tive com a prática da profissão há 20 anos.

Eu analiso alguns fatores que contribuem para a piora desse cenário nos últimos anos. São observações pessoais minhas, mas vários deles eu já discuti com colegas.

1- Humanização dos pets

Ao mesmo tempo que os pets estão sendo cada vez mais bem tratados e vemos tutores cada vez mais preocupados (nem podemos mais chamá-los de proprietários), esse é um fator de sobrecarga emocional aos profissionais.

A substituição dos “animais de quintal” por ditos novos “membros da família” trouxe um apego maior aos animais, que fez com que seus donos estivessem dispostos a gastar muito mais com os cuidados de saúde deles.

Isso catapultou o crescimento de muitas clínicas e hospitais veterinários (e reconheço isso, pois também surfei nessa onda, o que me permitiu ter dinheiro para pagar minhas contas e criar meus filhos), mas veio com um efeito colateral: o apego “excessivo” aos pets gerou uma sobrecarga emocional maior ainda sobre os veterinários. Pessoas mais apegadas logo te ameaçarão com um processo por um suposto erro médico se o animal delas veio a óbito. Isso era algo menos comum anos atrás.

Se isso vale a pena ou não, se está certo ou errado, não vem ao caso neste momento. O que estou fazendo aqui é uma interpretação do cenário atual e não um juízo de valores.

 

2- Acesso à tecnologia

O artigo apontou que uma das causas de sobrecarga é estar sempre disponível, mesmo fora do horário de trabalho. Isso se acentuou muito nos últimos anos, especialmente devido ao WhatsApp.

Há 15 anos, só seríamos acessados pelo cliente ou equipe fora de expediente por ligações. E isso não era tão fácil assim. Hoje é muito fácil simplesmente enviar uma mensagem a qualquer momento do dia, não importando se é final de semana ou madrugada.

Como uma veterinária me relatou recentemente: “eu estava odiando meu celular, não suportava mais ser interrompida a todo momento”. Ela conseguiu resolver esse problema, mas muitos seguem passando noites, finais de semana e férias respondendo mensagens de clientes e da equipe enquanto os filhos e cônjuges imploram por atenção.

 

3- Profissionalização dos negócios

Como consultor, esse é o ponto que mais me “dói” em falar, mas a passagem de “veterinário” para “empresário” é algo extremamente desconfortável para muitos. Recentemente, uma veterinária chorou na minha frente dizendo que não queria ter que lidar com todas essas demandas de negócio, ela queria “ser só veterinária”. Mas, isso não basta hoje em dia, ela precisa saber de marketing, análise financeira, tributos, liderança e tantas habilidades estranhas à profissão.

Uma das causas disso é o grande crescimento da concorrência, devido à proliferação quase viral das faculdades de veterinária. Com mais gente disputando o “bolo”, o cliente tem mais opções e qualquer “escorregão” nosso ele já nos troca pela concorrência. Está aí mais uma causa de pressão.

Entra junto com isso a busca implacável por metas, a exigência cada vez maior de resultados e tudo isso acaba tendo um efeito contrário em pessoas sem uma vocação inata de comerciantes: quanto maior a pressão, pior o resultado (e pior a saúde mental).

 

Como o próprio texto diz, algumas condições são inerentes à profissão e são difíceis de ser evitadas. Mas, a abordagem a isso precisa ser sistêmica para se preservar a saúde mental dos profissionais.

Não posso falar que eu tenho uma solução para esse problema tão complexo (não seria pretensioso a ponto de falar isso) e também não digo que os negócios veterinários não valem mais a pena. No entanto, se não forem feitas mudanças estruturais importantes, dificilmente manteremos a sanidade dentro da área e acabaremos caindo no burnout.

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